Eu, monstro
- Alan Narcizo | O Autor
- 7 de nov. de 2024
- 4 min de leitura

A noite pode trazer incidentes incontroláveis. Os pesadelos, por exemplo, são a prova de nossa fragilidade noturna, pois quando a consciência é derrotada pelo sono, somos enviados para abismos desconhecidos onde se movem os medos, as imagens estranhas e as memórias antigas. E nesse reino somos meros súditos de Hipnos, senhor do sono. Foi em um pesadelo noturno que vi a coisa pela primeira vez. Depois disso, tudo mudou.
Lá estava ela caminhando ereta como gente, dando longos passos sobre a planície a minha frente. Parecia que demoraria o dia todo para cruzar o meu caminho. A coisa lembrava vagamente um urso pardo, porém era muito mais alta e corpulenta. Um gigante. Mesmo de longe, eu podia sentir as fortes vibrações no solo enquanto o monstro seguia seu rumo desconhecido. A criatura urrava ocasionalmente e eu estremecia dos pés à cabeça, tinha vontade de correr, no entanto, a planície de meus sonhos não oferecia nenhum abrigo contra a monstruosidade andante.
Num certo momento o monstro aparentemente distraído, lançou o olhar em minha direção e mudou seu curso. Estava vindo até mim e foi como se meus pés estivessem fincados ao chão. De frente, a criatura era ainda mais assustadora, pois seus dentes saltavam de dentro da boca. Aqueles caninos podiam muito bem dilacerar a mais dura das couraças.
Ao me alcançar, tive a impressão de estar diante de um grande edifício, sua sombra cobriu metros a minha volta. Quando menos esperava, senti a baforada quente e num rápido movimento, os dentes cravaram em meu braço, arrancando-o. Gritei.
Acordei suando, assustado com o pesadelo absurdo. Num salto, levantei e me pus a lavar o rosto. A água escorria pelos meus olhos e nariz e misturava-se ao suor. Aproveitei e molhei também os cabelos até que um frescor acalmasse meus nervos. Com a toalha ainda no rosto, recordei daquela boca enorme e foi como se sentisse seu bafo quente. Fora só mais um sonho. Um estrondo vindo da rua interrompeu aquele momento tão aconchegante, provocado pela maciez do pano em meu rosto. Corri para janela do apartamento a fim de identificar a origem do som perturbador e contemplei a cena fantástica. A besta disforme que vagava na planície dos sonhos entrara furtivamente no mundo real e agora deslocava-se pelas ruas vizinhas fazendo uma arruaça. Não fechar as portas do sonho, foi um imperdoável descuido de minha parte e eu teria que lidar com o fato de que todos podiam ver a coisa.
Tomei uma decisão insana. Troquei-me, desci as escadas levando comigo uma marreta. Fui em direção ao monstro que, à esta altura, abocanhava o semáforo da avenida. Eu precisava dar fim àquela vida desprezível. Tentei machucar seus pés peludos, arranquei-lhe alguns pelos da perna, lancei pedras que acertaram a barriga monstruoso da criatura, mas tudo fora em vão.
O animal permaneceu perambulando nos arredores durante dias e sequer olhava para mim. Como poderia me ignorar daquela maneira sendo que saíra de algum canto obscuro da minha mente? Ele devia ter algum tipo de ligação comigo. Minha única certeza era que eu havia falhado em esconder a criatura de tudo e de todos. Apesar disso, absolutamente ninguém prestava atenção naquela coisa.
Quanto a mim, lhe dava toda a atenção e gastava horas tramando contra ela. Preocupava-me quando a ouvia perambulando pela cidade enquanto destruía calçadas, placas, enquanto parava o trânsito ou engolia um ou outro outdoor. Às vezes até pisoteava inocentes, mas eles logo se levantavam e retomavam seus deveres. Mas a culpa me corroía. A culpa era só minha.
Os anos se passaram e depois de muitas tentativas frustradas de expulsar a besta, senti um mover diferente do meu espírito, como se uma luz indicasse um novo caminho a percorrer. O caminho da aceitação. E foi assim que a coisa se tornou uma coisa comum. Já não me importava vê-la vagando em meu bairro. Às vezes ela cruzava meu caminho quando eu estava indo trabalhar e eu aprendi e passar por baixo de suas pernas sem que fosse esmagado. Não é preciso dizer que o monstro pesava toneladas, mas nem mesmo aquela enorme barriga me assustava mais. E foi assim durante toda a minha vida adulta até a velhice.
Com o tempo, notei que muitas outras pessoas faziam o mesmo, cada um com seu monstrengo particular. Alguns carregavam adoráveis fadas que, de vez em quando, puxavam o cabelo de estranhos. Outros tinham sempre elefantes orelhudos na sua cola e estes costumavam avançar em desconhecidos. Sem contar os dragões, grifos e as serpentes aladas pairando sobre a cabeça de velhos homens. Todos os dias eu me deparava com pessoas e seus fantásticos monstros companheiros. É provável que nenhum desses indivíduos tenha procurado livremente a companhia de tais seres, então eles deviam ter invadido o mundo por algum rasgo ou fissura mágica. No meu caso, fora o mundo dos sonhos.
Lembro-me de uma mulher que tinha por companheira uma estranha criatura na forma de um cone. Todas as vezes que essa dama ia ao salão de beleza, o cone se colocava a sua frente para lhe impedir de cuidar da aparência. Essa mesma mulher me explicou que o cone apareceu na cozinha numa noite em que ela havia discutido com o marido. Um tanto curioso.
Com o passar dos anos, notei que muitos aceitavam seus monstros apesar do desconforto que lhes causavam e pude perceber que alguns até se davam muito bem com as criaturas. Certa vez conheci um bairro onde os monstros eram muito maiores do que o meu.
Bem, agora que estou próximo de deixar este mundo, senti que deveria registrar essas palavras como herança às futuras gerações. Os monstros virão e a melhor coisa a fazer é aceitá-los. A maioria deles são inevitáveis. Recentemente voltei a perceber as poderosas vibrações de passos monstruosos, porém até que fiquei feliz. Recordei que aprendi a aceitar o meu gigante e penso quão maior teria sido meu fardo caso não o fizesse. Inclusive, inúmeras coisas que rondaram minha prolongada vida foram imediatamente esmagadas pelas patas do monstro sem que eu me desse conta no momento. O monstrengo teve lá seu valor.
Comments